Monoculturas da mente
Física, filósofa, feminista e
ativista ambiental, Vandana Shiva é leitura obrigatória quando o assunto é
biodiversidade e biotecnologia. Nesta obra, a autora indiana defende que as
monoculturas não são apenas maneiras de usar a terra, mas também de pensar e de
viver.
Vandana Shiva costuma intrigar pela coragem e resistência pacífica com
que enfrenta grandes corporações agrícolas em debates internacionais que
definem políticas globais de produção e segurança alimentar. Mesmo nos debates
mais acalorados, um sorriso estampa discretamente seu rosto, por exemplo,
quando lançou críticas veementes ao texto da Convenção da Biodiversidade,
durante a ECO 92. A suavidade só traz mais força a essa mulher: física,
filósofa, feminista e ativista ambiental, é autora, entre outros, do aclamado
livro “Staying Alive: Women, Ecology and Development”, de 1989. Em 1993,
ela ganhou o Prêmio Nobel Alternativo da Paz (o Right Livelihood Award). Shiva
é líder do Fórum Internacional sobre Globalização, ao lado de Ralph Nader e
Jeremy Rifkin, consultora para questões ambientais da Rede do Terceiro Mundo,
além de diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência, Tecnologia e Ecologia, em
Nova Déli.
Há pelo menos vinte anos, seus escritos têm se destacado em todo o mundo, como
um recado lúcido e independente, endereçado aos detentores do poder político e
do saber científico do Ocidente – duas forças, segundo ela, centralizadoras,
uniformizadoras e pouco dispostas a ouvir o que as comunidades tradicionais dos
países do Sul, que acumulam milhares de anos de experiência em produção
agrícola, têm a dizer sobre biodiversidade e biotecnologia.
Em Monoculturas da Mente, Vandana Shiva reúne cinco ensaios que trazem
inúmeros questionamentos e reflexões sobre as causas e consequências da perda
da biodiversidade, bem como os desafios que envolvem a sua preservação. Os
relatos da autora são resultado de sua participação em movimentos de defesa da
diversidade da natureza e da cultura dos povos tradicionais. É o caso, das
camponesas do movimento Chipko, em Garhwal, no Himalaia, combatentes das
monoculturas de pinheiros que ocuparam parte das florestas nativas, sem que
pudessem dar conta das inúmeras funções até então exercidas pela antiga
cobertura vegetal, tais como fornecer água e conservar o solo e prover
alimentos, forragem, fertilizantes, fibras e combustíveis.
No primeiro ensaio, que leva o nome do livro, a autora afirma que a principal
ameaça à biodiversidade vem do hábito de se pensar em termos de monoculturas.
Ela escreve: “As monoculturas ocupam primeiro a mente e depois são
transferidas para o solo. As monoculturas mentais geram modelos de produção que
destroem a diversidade e legitimam a destruição como progresso, crescimento e
melhoria. (...) A expansão das monoculturas tem mais a ver com política e poder
do que com sistemas de enriquecimento e melhoria da produção biológica. Isso se
aplica tanto à Revolução Verde quanto à revolução genética ou às novas
biotecnologias.”
Shiva argumenta que eleger um único produto principal de exploração comercial
implica em deixar de enxergar as outras diversas funções que a floresta exerce
na vida das comunidades, para quem a mata é mais do que um grande depósito de
madeira. Essa visão reducionista implica, portanto, em fechar os olhos para
elementos que o saber local compreende, mas que a ciência dominante
simplesmente ignora.
Escrito para o programa WIDER, da Universidade das Nações Unidas, sobre “O
sistema de saber enquanto sistema de poder”, este ensaio procura mostrar como o
saber local dos agricultores do Sul torna-se “invisível” diante do saber
ocidental que parece ter colonizado intelectualmente o mundo inteiro. Basta
chegar a um novo destino de exploração da terra para que a opção ocidental
globalizadora coloque-se, em pouco tempo, como o único saber sistemático e
científico capaz de garantir e aumentar a produção de alimentos – sem perder,
contudo, o discurso de zeladora da biodiversidade. Assim, os sistemas locais de
produção agrícola são desconsiderados e desqualificados enquanto saberes. Tidos
pejorativamente como primitivos e anticientíficos, esses conhecimentos entram
em crise, levando ao colapso séculos de tradição no campo, de práticas
culturais e de cuidados ancestrais com a terra.
Vandana Shiva entende que, ao contrário do que diz o discurso hegemônico,
muitas vezes o saber local é superior ao pensamento globalizado, na medida em
que está mais perto da vida na floresta e de sua integridade e diversidade. Um
dos exemplos citados no ensaio explicita bem o que a autora procura defender: “A
ciência dominante na silvicultura não tem espaço para o saber dos hanunus das
Filipinas, que dividem as plantas em 1.600 categorias, entre as quais os
botânicos especializados só conseguem distinguir 1.200. Os fundamentos do saber
dos sistemas de safras baseados em 160 tipos de plantas da tribo Llua, da
Tailândia, não são considerados saber, nem pela silvicultura dominante, que só
vê a madeira comercial, nem pela agricultura dominante, que só vê a agricultura
quimicamente intensiva”.
Na interpretação da autora, o saber científico considera a floresta natural
rica em biodiversidade como caos, enquanto que a floresta “fabricada pelo
homem” é vista como ordem. Assim, há uma clara tendência antinatureza, em que a
diversidade cede lugar à uniformidade de espécies isoladas, mais adequadas aos
objetivos industriais e comerciais do modelo de silvicultura que se vende mundo
afora como única alternativa.
Da mesma forma, as sementes das comunidades locais são consideradas primitivas,
inferiores e de má qualidade pelos agentes da Revolução Verde. Eles insistem em
pulverizar sobre o planeta a ideia de que apenas as sementes desenvolvidas em
laboratório para resistir aos herbicidas, devem fazer parte do sistema
produtivo, uma vez que, graças à engenharia genética de ponta, são as únicas
capazes de oferecer alto rendimento.
Mais detalhes sobre essas questões de biotecnologia são abordados nos três
ensaios subsequentes (dois dos quais escritos para a Rede do Terceiro Mundo
para a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento) e
tratam o tema sob a perspectiva do Terceiro Mundo e sua relação com o meio
ambiente. O alerta comum aos três textos diz respeito aos riscos de se misturar
os interesses da biodiversidade e da biotecnologia nas mais diversas mesas de
negociação. Diz Vandana Shiva: “(...) Há um uso enorme e injustificado de
poder e política quando a biodiversidade e seus produtos são tratados como uma
herança irrestrita e comum da humanidade quando vêm do Terceiro Mundo, ao mesmo
tempo em que os produtos da mesma biodiversidade são considerados propriedade
privada e patenteada quando são ligeiramente modificados pelos laboratórios do
Norte. A diversidade enquanto modo de pensar levaria a um tratamento mais justo
e equitativo das contribuições do Norte e do Sul.”
No último ensaio da obra, a autora avalia os impactos negativos que a Convenção
sobre Biodiversidade, realizada em Nairóbi em 1992, pode provocar no Terceiro
Mundo, visto que alguns pontos, segundo ela, mais parecem servir à exploração
do que à preservação da biodiversidade. Para facilitar o entendimento e
reflexão, a edição brasileira de Monoculturas da Mente traz a íntegra do texto
em questão como apêndice.
Por fim, resta dizer que ainda que o termo Terceiro Mundo tenha caído em desuso
entre muitos acadêmicos, nesta obra a distinção entre os interesses dos dois
hemisférios do globo serve à autora como base para um pedido urgente de diálogo
mais honesto que ainda precisa ocorrer entre o Norte e o Sul. Dar ouvidos ao
que clamam os pequenos - que não são uma minoria no planeta – parece ser o
primeiro passo para o resgate da diversidade no modo de pensar e entender as
necessidades dos povos e da Terra.
Vandana Shiva¹ costuma intrigar pela coragem e
resistência pacífica com que enfrenta grandes corporações agrícolas em debates
internacionais que definem políticas globais de produção e segurança alimentar.
Mesmo nos debates mais acalorados, um sorriso estampa discretamente seu rosto,
por exemplo, quando lançou críticas veementes ao texto da Convenção da
Biodiversidade, durante a ECO 92. A suavidade só traz mais força a essa mulher:
física, filósofa, feminista e ativista ambiental, é autora, entre outros, do
aclamado livro “Staying Alive: Women, Ecology and Development”, de 1989.
Em 1993, ela ganhou o Prêmio Nobel Alternativo da Paz (o Right Livelihood
Award). Shiva é líder do Fórum Internacional sobre Globalização, ao lado de
Ralph Nader e Jeremy Rifkin, consultora para questões ambientais da Rede do
Terceiro Mundo, além de diretora da Fundação de Pesquisas em Ciência,
Tecnologia e Ecologia, em Nova Déli.
Há
pelo menos vinte anos, seus escritos têm se destacado em todo o mundo, como um
recado lúcido e independente, endereçado aos detentores do poder político e do
saber científico do Ocidente – duas forças, segundo ela, centralizadoras,
uniformizadoras e pouco dispostas a ouvir o que as comunidades tradicionais dos
países do Sul, que acumulam milhares de anos de experiência em produção
agrícola, têm a dizer sobre biodiversidade e biotecnologia.
Em Monoculturas da Mente,
Vandana Shiva reúne cinco ensaios que trazem inúmeros questionamentos e
reflexões sobre as causas e consequências da perda da biodiversidade, bem como
os desafios que envolvem a sua preservação. Os relatos da autora são resultado
de sua participação em movimentos de defesa da diversidade da natureza e da
cultura dos povos tradicionais. É o caso, das camponesas do movimento Chipko,
em Garhwal, no Himalaia, combatentes das monoculturas de pinheiros que ocuparam
parte das florestas nativas, sem que pudessem dar conta das inúmeras funções
até então exercidas pela antiga cobertura vegetal, tais como fornecer água e
conservar o solo e prover alimentos, forragem, fertilizantes, fibras e
combustíveis.
No
primeiro ensaio, que leva o nome do livro, a autora afirma que a principal
ameaça à biodiversidade vem do hábito de se pensar em termos de monoculturas.
Ela escreve: “As monoculturas ocupam primeiro a mente e depois são
transferidas para o solo. As monoculturas mentais geram modelos de produção que
destroem a diversidade e legitimam a destruição como progresso, crescimento e
melhoria. (...) A expansão das monoculturas tem mais a ver com política e poder
do que com sistemas de enriquecimento e melhoria da produção biológica. Isso se
aplica tanto à Revolução Verde quanto à revolução genética ou às novas
biotecnologias.”
Shiva
argumenta que eleger um único produto principal de exploração comercial implica
em deixar de enxergar as outras diversas funções que a floresta exerce na vida
das comunidades, para quem a mata é mais do que um grande depósito de madeira.
Essa visão reducionista implica, portanto, em fechar os olhos para elementos
que o saber local compreende, mas que a ciência dominante simplesmente ignora.
Escrito
para o programa WIDER, da Universidade das Nações Unidas, sobre “O sistema de
saber enquanto sistema de poder”, este ensaio procura mostrar como o saber
local dos agricultores do Sul torna-se “invisível” diante do saber ocidental
que parece ter colonizado intelectualmente o mundo inteiro. Basta chegar a um
novo destino de exploração da terra para que a opção ocidental globalizadora
coloque-se, em pouco tempo, como o único saber sistemático e científico capaz
de garantir e aumentar a produção de alimentos – sem perder, contudo, o
discurso de zeladora da biodiversidade. Assim, os sistemas locais de produção
agrícola são desconsiderados e desqualificados enquanto saberes.
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¹ É autora dentre outras obras, de Biopirataria, a pilhagem da natureza e do
conhecimento.
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